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Érebus -- Capítulo 13 -- Érebus




Aquela coisa começou a ganhar volume e de repente abandonou seu estado semi-translúcido para adquirir uma tonalidade acinzentada que foi escurecendo mais a cada segundo. Ângelo começou a perceber uma forma surgindo no meio daquela massa de névoa pulsante; parecia-se com um grande inseto, mas não estava totalmente claro.
Diana permanecia junto da porta, mas percebeu que alguma coisa estava acontecendo na sala, teve medo pelo namorado e recuou para ver o que estava ocorrendo. Ficou boquiaberta quando viu aquela grande concentração nebulosa pulsando suspensa no ar bem no meio da sala. Nada jamais poderia explicar que tipo de fenômeno era aquele, nem mesmo todos os cientistas da terra.
_ Ângelo!_ gritou Diana fazendo sinal para que ele saísse de tão perto da coisa.
Mônica apareceu junto de Diana e também viu a mesma imagem. Era como olhar para uma pequena tempestade com nuvens revoltosas bem no meio da sala. De repente ela viu uma face formada pela fumaça, um rosto medonho sem olhos que apareceu diretamente em sua frente e em seguida se desfez entrando novamente na pulsante coisa giratória.
Girava e pulsava.
_ Meu, Deus, do céu!_ ela disse_ o que é isso!?
Diana também tinha vislumbrado a face macabra que com um giro pareceu olhar para tudo e todos na sala antes de se desfazer ou voltar para dentro da coisa que pulsava.
Ângelo gritou de volta:
_ Saia daqui!
_ A porta está trancada_ respondeu a namorada com a voz vacilante.
Patrícia e Heloi que ainda estavam tentando abrir a porta, escutaram os outros falando e foram averiguar, ficaram momentaneamente sem saber o que pensar ao se depararem com o fenômeno. Mas aquilo ainda não era o pior.
Fausto sentia uma sensação de que algo nele estava se tornando cada vez mais forte. Era como se alguma parte oculta dentro dele estivesse respondendo a um estímulo provocado por aquela criatura desconhecida que se formava bem a sua frente.
Pensou em onde sua arma poderia estar, viu que ainda estava nas mãos de Ângelo, mas em seguida se deu conta de que não precisaria dela para dar cabo das pessoas naquela sala, sabia que aquele fenômeno era algo ligado a ele próprio e que podia ser a causa das coisas fora do comum que ele conseguia realizar; ou seja, a real origem de suas capacidades misteriosas.
Fausto imaginava que de alguma forma poderia usar seus dons e sua força sobrenatural para atacar as pessoas na sala, mas o que aconteceu em seguida o surpreendeu completamente. De repente aquela sensação boa de vigor desapareceu, Fausto se sentiu enfraquecer tão rapidamente que não houve tempo nem mesmo para falar alguma coisa, caiu novamente, suas pernas perderam as forças e ele tombou para a frente, teve de se apoiar no sofá. O coração doía, a cabeça latejava e a respiração fora de ritmo denunciava que alguma coisa não estava correta. O corpo de Fausto que antes estava passando por um processo aparente de vitalização, passou em poucos segundos a perder completamente as forças. O fenômeno não o estava insuflando como pensou em princípio, mas sim drenando algo de dentro dele, retirando uma parte importante sem a qual ele não seria nada além de uma personalidade distorcida e corrupta que jamais teria, por si só, forças para tomar o controle do corpo onde estava aprisionada. Sem a força da criatura Fausto era apenas o lado escuro, a sombra de Ricardo; e este poderia conviver com ele como muitos homens fazem visto que a sombra é apenas o conjunto de impulsos mais primitivos e destrutivos de um ser humano.
Obviamente a ajuda que a personalidade de Fausto teve para sobrepujar a de Ricardo tinha sua origem naquela criatura, mas Fausto se perguntava por que libertá-lo para depois destruí-lo sem permitir que ele completasse seus planos. Não fazia sentido algum.
_ Ora! Mas o que está acontecendo?_Fausto disse para si mesmo, mas em voz alta, de modo que todos ouviram. Porém não deram a mínima atenção, estavam todos com os olhares fixos no fenômeno sobrenatural que ganhava volume e escurecia mais a cada instante.
Finalmente a voz retumbante ecoou por toda a sala:
_Ahhh...!_ o som era poderoso como um trovão produzido pela chuva lá fora, embora nenhum som pudesse sair ou entrar na casa, mas soou ao mesmo tempo como um suspiro melancólico.
Todos na sala tiveram a impressão de escutar a voz de um fantasma, uma voz chiante e arrastada, mas tão forte que por um segundo todos acharam que as paredes da sala tremiam.
Naquele momento Mônica se lembrou das vezes em que Ricardo dizia estar ouvindo vozes e perguntava se ela também tinha escutado. Mônica nunca ouvira nada, mas naquele momento sentiu o medo do desconhecido invadindo sua mente e seu corpo já cansado e machucado.
Àquela altura dos fatos, todos estavam tão atônitos que nem perceberam que Fausto perdera as forças, tombou num baque surdo e permanecia caído no chão, completamente sem sentidos, parecia morto. Nem as mulheres nem os dois homens estavam se dando conta disso; todos eles só conseguiam olhar para a monstruosidade que aparecia e revolvia-se bem diante deles. Havia uma atração estranha naquilo, uma atração da qual não conseguiriam se desvencilhar facilmente. Como o canto da sereia das histórias mais antigas dos relatos de marujos.
Patrícia pensou que fosse desmaiar e segurou o braço do marido; muitas coisas passavam em sua cabeça, mas a única coisa que importava era que sua filha estava bem segura longe dali. O terror de ver algo completamente sem explicação a tinha paralisado por completo.
Heloi mantinha a boca aberta embasbacado com o fenômeno; sentiu as duas mãos da esposa envolvendo seu braço e apertando com força, mas não conseguiu dizer ou fazer nada que não fosse permanecer vidrado na grande esfera de fumaça etérea. Era incrível e indescritível ao mesmo tempo; Heloi nunca fora dado a sensações estranhas em toda a sua vida, nunca tinha sentido qualquer coisa que pudesse ser classificada como sendo sobrenatural, mas naquele momento cada célula de seu corpo parecia estar gritando frente a uma legítima manifestação de algo oriundo de qualquer esfera fora do reinado da matéria, algo proveniente de uma zona onde nenhuma força humana tem acesso, a não ser, talvez, em seus pesadelos mais violentos e desconexos. Sentiu um arrepio dançar em sua coluna e em seguida se irradiar por todo o corpo.
Em breve toda a sensibilidade deles seria retirada.
Diana tinha certeza de que todos estavam com a mesma impressão que ela, todos estavam sentindo cada vez mais, uma presença perniciosa se insinuando no ambiente, enchendo a sala. Era como se aquela presença estivesse expulsando o ar da sala na medida em que ganhava corpo e aquilo causava uma sensação de sufocamento crescente que começava a transformar a atmosfera do lugar em algo pesado, espesso e insuportável. A mulher sabia que devia sair dali o mais rápido possível, procurar outra forma de fugir e abandonar aquela casa imediatamente, do contrário, correria o risco de jamais sair dali, mas se deu conta de que já não tinha mais força de vontade suficiente para se desvencilhar daquela presença; sua atenção havia sido capturada e ela não conseguia se libertar não importava o quanto fizesse força para isso. De fato, quando ela percebeu o que estava acontecendo, já não restava muita força para lutar. Estava presa àquele ser amorfo e hediondo assim como os demais.
Na verdade todos estavam na mesma situação; olhos tão vidrados que mal podiam piscar; seus corpos já não respondiam mais a qualquer ordem dada pelo cérebro era como se um feitiço os estivesse envolvendo e impedindo que tomassem qualquer atitude, mas o que estava de fato acontecendo só um deles conseguiu entender.
Ângelo também sentiu os efeitos da sedução que ocorria na sala, sua mente divagou sobre vários acontecimentos de sua vida e não se deteve em nenhum específico. Olhando mais atentamente para aquele fantasma amorfo que pairava entre eles, Ângelo teve a impressão de que toda aquela fumaça estranha era composta na verdade por uma infinidade de pequenos insetos alados, mas aquela visão não ficou clara para ele. Teve de fazer bastante força para se desvencilhar da vontade de continuar olhando o fenômeno e finalmente se deu conta de que todos estavam completamente paralisados de pé cada qual em seus lugares, exatamente como se tivessem sido hipnotizados.
Olhando para o chão ele finalmente notou Fausto desacordado.
“Deus!”_pensou_ “Devo estar ficando completamente louco”. Mas não era loucura. Estava acontecendo de verdade.
_Diana!_ Ele chamou a namorada, mas não obteve resposta. Foi até ela o mais rápido que pôde.
Antes que pudesse chamá-la novamente ele ouviu a voz da criatura outra vez.
_ Tantassss pessoassss._ reverberou. As paredes pareceram tremer em seguida com o eco das palavras.
Ângelo chegou a se abaixar momentaneamente impelido pelo instinto de proteção, mas em seguida olhou a grande bola de fumaça, insetos ou o que quer que fosse. Continuava lá.
Voltou sua atenção para a namorada e chamou a segunda vez:
_ Diana! Olha pra mim!
Os olhos dela continuavam perdidos na direção da coisa. Diana já não piscava mais; seus belos olhos vivos estavam sonolentos. Ângelo segurou-a pelo braço e sacudiu levemente como quem tenta acordar alguém de um sono, mas não funcionou. Ele verificou que Heloi, Patrícia e Mônica também se encontravam no mesmo estado. Era terrível vê-los daquele modo.
A voz estrondosa retornou:
_Ângelo._ chamou.
Ele se deteve logo que ouviu seu nome, não respondeu; a voz retornou outra vez:
_Ângelo._ Disse outra vez.
Ângelo continuou sacudindo a namorada na esperança de que ela despertasse, mas foi em vão.
A voz novamente:
_Eu conheço você.
Ele não queria responder, estava com medo; tinha certeza de que seria engolido se trocasse qualquer palavra com aquilo.
_Eu acompanho você._ Naquele momento a coisa suspensa no ar parecia-se com um grande coração negro pulsando e pulsando repetidas vezes. A cada novo pulsar era como ouvir um poderoso trovejar.
Ângelo sabia que fosse aquilo o que fosse, estava brincando com a percepção de realidade de todos eles; a verdade era que aquela coisa não estava só suspensa no ar da sala, mas já havia se infiltrado em suas mentes; desvendava e jogava com seus pensamentos, medos mais profundos, conceitos e tantas quantas informações conseguia extrair deles; como um parasita mental hediondo devorando e assimilando tudo o que encontrava. O homem sabia que não estava vendo realmente um coração negro e trovejante, sabia que aquilo não tinha forma alguma exatamente como o vira na garagem da casa da namorada, porém a criatura permanecia fingindo mudar de forma.
Ângelo arriscou uma pergunta. Sua guarda já estava baixa:
_ O que é você?_ Disse medindo as palavras quase como se estivesse travando um contato imediato de primeiro grau com uma entidade alienígena que viajou milhões de anos luz até chegar a este planeta. Curiosamente tal pensamento não estava assim tão longe da verdade.
Enquanto falava, ele apertava a mão da namorada na esperança de que ela despertasse do transe no qual estava mergulhada ou que o feitiço se quebrasse, mas ao mesmo tempo tentava não forçar muito para não machucá-la.
_ Não está me reconhecendo?_ perguntou a voz.
Ângelo não entendeu a pergunta, mas sabia que de alguma forma realmente já conhecia aquilo, a voz era familiar, não era a primeira vez que a escutava em sua vida, de fato, era a mesma que tinha falado com ele no dia do acidente na estrada e também no parque de diversões, porém jamais poderia imaginar que tal voz pertencesse a algo tão horrendo e fora de compreensão. Poderia imaginar que se tratasse de algum dom psíquico ou qualquer coisa desse tipo, não se importava, na época só queria compreender o que acontecia com ele. Agora, entretanto, lhe ocorria a idéia de que sua capacidade eventual de ouvir vozes e saber coisas estranhas não era proveniente de alguma dádiva bondosa e celestial ou de algum distúrbio mental não documentado por especialistas, mas sim, tinha uma origem profana com a qual ele, Ângelo, não queria ter nenhum contato. Já era tarde demais para tentar voltar atrás.
Espantosamente ele se viu respondendo contra sua própria vontade:
_ Eu conheço você. Já o ouvi antes._ por que disse aquilo? Imaginou.
Na cabeça dele, aquela experiência era ao mesmo tempo tremendamente amedrontadora, mas surpreendentemente familiar. Por mais incrível que pudesse parecer, Ângelo estava se sentindo como se estivesse olhando num espelho, como se aquele amontoado pulsante e sem forma de matéria estranha fosse o seu próprio rosto refletido numa lâmina de vidro. Ele não se deu conta, mas tudo aquilo, cada sensação que o corpo de Ângelo manifestava era causada pela sedução da criatura que esquadrinhava e abria caminho dentro da mente consciente e inconsciente dele, envolvendo e se apoderando de tudo o que encontrava, recordações, memórias, estilhaços de sonhos e sentimentos; só os pensamentos dele ainda não tinha sido completamente corrompidos, mas os tentáculos invisíveis da criatura continuavam avançando pelos labirintos mentais, indo cada vez mais fundo até o âmago, procurando se ramificar dentro do homem até que estaria pronto para tomar o controle total da vida dele assim como tinha feito com Ricardo e com tantas outras pessoas antes dele.
Na visão de Ângelo não havia mais ninguém ali na sala com ele, estavam frente a frente apenas a criatura sedutora e ele mesmo; foi como se sua namorada, os donos da casa, Mônica e até o corpo caído de Fausto tivessem sido arrebatados do cômodo e desaparecido em pleno ar. Naquele momento o rapaz ouvia vozes variadas, ele não sabia, mas eram vozes das várias pessoas que já tinham sido dominadas e aprisionadas pela criatura durante anos e anos, décadas e décadas, séculos e séculos de ação sorrateira, oculta e indefectível; vozes de homens e mulheres, adultos e crianças, jovens e idosos, todos condenados.
Todas as vozes falavam coisas diferentes e a cacofonia era quase ensurdecedora. Ele as escutava claramente, muito embora elas estivessem sendo incutidas diretamente em seu córtex cerebral como uma injeção concentrada contendo várias e várias vidas em agonia.
A voz disse:
_ Você é uma pessoa especial, muito diferente dos outros, mais forte. Preciso de você.
Ângelo não percebeu mais deixou a arma que tinha tomado de Fausto cair de suas mãos sobre o tapete, estava sucumbindo.
Encurralado em algum lugar dentro de sua própria mente, o pouco que ainda restava de lucidez lutava para romper o feitiço delirante que pesava sobre ele; agarrava-se às lembranças de seus pais, sua namorada, seus amigos, da pequena Ingrid e sua família; mas as sombras eram densas demais, quase intransponíveis e avançavam sem piedade, sem misericórdia e em breve possuiriam todas essas lembranças e memórias; não restaria nada em que Ângelo pudesse se agarrar para voltar à superfície, nada que servisse como cabo guia para libertá-lo das trevas interiores; ele ficaria preso e perdido dentro de si mesmo e outro assumiria o controle, talvez alguém como um novo Fausto ou talvez alguém muito pior.
_Entregue-se a mim._ disse a voz. Mais como uma ordem do que como um pedido.
A cacofonia de vozes em sua mente impedia o pensamento claro de fluir e dificultava o pouco de possibilidade que ele tinha de resistir ao ataque tenebroso do espírito obscuro.
Àquela altura a mente de Ângelo já estava vagando dentro das brumas da própria criatura, vez por outra ele se deparava com uma imagem surgindo repentinamente em sua visão, retalhos de outras mentes destruídas e assimiladas, mas que ainda faziam parte da criatura; ele via pessoas desconhecidas, lugares desconhecidos, vidas desconhecidas; tudo passando tão rapidamente quanto num filme sendo exibido em alta velocidade.
Ângelo não chegou a perceber, mas foi carregado em meio aos estilhaços de vidas que a criatura tinha engolido, saltando de imagem em imagem como se sua mente estivesse se tele-transportando numa velocidade absurda e sem saber chegou às mais recentes, antes dele mesmo. As imagens da cabeça de Ricardo.
Praticamente toda a vida de Ricardo se desenrolou bem diante dos olhos de Ângelo, mostrando claramente desde os desejos mais infantis até o medo mais oculto. Ricardo jamais havia contado a qualquer pessoa, nem mesmo a Mônica, mas desde pequeno tinha uma intensa repulsa a insetos, não chegava a ser uma fobia, não era nem mesmo um medo, apenas repulsa. Repulsa esta que com o passar dos anos evoluiu para um patamar um pouco mais inquietante e que ele fazia questão de não revelar a ninguém, sentia vergonha do que considerava uma espécie de fraqueza, mesmo sabendo que praticamente todas as pessoas têm algum tipo de medo, fobia ou repulsa de alguma coisa, em maior ou menor grau.
Ricardo escondeu de todas as pessoas que conhecia, mas não foi capaz de manter seu segredo oculto diante da sombra que esquadrinhou sua mente e usou aquilo contra ele mesmo atormentando-o com visões constantes e sonhos aterradores repletos de grandes insetos que o perseguiam; principalmente dos que ele mais detestava; aranhas, baratas e besouros ou misturas horrendas e malsucedidas de todos eles. Aquele foi o caminho que a criatura achou para fragilizar Ricardo e dar abertura para o surgimento de seu outro “eu”. Fausto.
Da mesma forma o monstro procurava encontrar em Ângelo algo que pudesse usar para também aprofundar seu terror e embora não tenha encontrado algo tão claro quanto em Ricardo, ainda assim conseguiu se ramificar o suficiente dentro da mente do homem, violando e assumindo tudo o que encontrou no caminho.
As coisas não faziam sentido e estava tudo perdido dentro de uma grande tempestade cerebral até que os fragmentos de memórias e lembranças alheias trouxeram à sua visão o rosto de Diana, sorridente e radiante como no dia em que a conheceu. Por um segundo inteiro aquele rosto sorriu para ele e em seguida desapareceu soterrado por várias outras imagens. Eram, naquele momento, as imagens de sua própria cabeça, de sua própria vida, reverberando dentro da nebulosidade na qual estava envolvido e foi precisamente aquilo que o fez acordar. Se demorasse alguns segundos a mais, não conseguiria se desvencilhar da sedução que o engoliria por completo.
O coração pulsante e nebuloso que pairava no centro da sala mudou sua forma pela última vez. Passou a se parecer com um entrelaçado de tendões, músculos e artérias criando extensões nebulosas como os tentáculos de um enorme cefalópode formado somente por sombras e névoa escura.
Toda a luz do cômodo começou a enfraquecer e falhar, como se a simples presença do monstro fosse o suficiente para roubar parte da luminosidade natural do ambiente. Se ele continuasse por mais tempo toda a luz dentro daquela casa seria substituída por um manto espesso e pesado de sombras que envolveria tudo e todos, não permitindo nem mesmo que qualquer um deles pudesse se mover, caso tentassem.
A força que Ângelo fez para despertar do meio daquele pesadelo acordado foi tão extrema que sua cabeça disparou em uma dor brutal quase imediatamente, foi como se abruptamente a conexão que ligava o homem ao monstro tivesse sido cortada abrindo feridas profundas em seu cérebro. O que, de fato, ocorreu.
Ele piscou algumas vezes e a visão do que realmente estava acontecendo na sala voltou a ser como antes, seu corpo estava parcialmente adormecido, mas a sensibilidade retornou logo em seguida como que despertando de um sono. Ângelo viu a criatura cujos tentáculos escuros e fantasmagóricos já estavam quase que todos ao seu redor; jamais esqueceria aquilo, tinha certeza de que não era humano, ou seja, ele tinha certeza de que aquela visão aterradora não era fruto de sua própria mente; Jamais uma mente humana poderia produzir uma imagem tão hedionda. Parecia saído de um filme de horror antigo, porém, era cem vezes pior. Ângelo saltou para trás com o susto; deixou um grito de terror escapar pela garganta, seu coração chegou a doer dentro do peito e perdeu a respiração por um segundo. Por uma fração muito pequena de tempo ele chegou a pensar que seria devorado pela criatura bem ali naquela sala, embora o monstro não tivesse qualquer boca ou dentes ou presas. O horror o dominou naquele instante com um toque gelado em seu corpo.
No momento seguinte o fantasma moveu os vários tentáculos em sua direção tentando alcançá-lo e quem sabe, puxá-lo novamente; movia-se lentamente e quando não conseguiu o que desejava, desmoronou caindo por terra, tornando-se translúcido novamente e se desfazendo como serpentes que rastejaram pelo chão da sala e sumiram em questão de segundos. Não ouve som algum naquele processo; a aparição tinha desaparecido, mas a presença estranha permanecia ali.
As luzes voltaram ao normal.
Assustado com o que tinha acabado de ver, finalmente Ângelo gritou o nome da namorada.
_ Diana!_ disse_ Acorda, pelo amor de Deus!
Diana piscou também; estava tonta, cambaleou e as únicas palavras que conseguiu pronunciar foram a da seguinte pergunta:
_ O que houve?
Percebendo que ela não tinha visto nada daquilo, ele também não disse nada, iria guardar a visão demoníaca para si mesmo ao menos por um tempo, mas não cometeria o mesmo erro das outras vezes; logo que tivesse um momento a sós com a namorada iria revelar as visões que teve naquela sala, se é que eram visões.
Um a um foram despertando do transe, Patrícia, Mônica, Heloi e Ricardo; todos demonstraram o mesmo grau de desorientação.
Ricardo ao ver Mônica se apressou em falar:
_ Como vim parar aqui?_ o tom de voz dele era totalmente diferente do que tinha demonstrado momentos antes.
Mônica percebeu a mudança na forma de falar, na verdade todos ali perceberam. Ela correu para abraçá-lo enquanto este se levantava do chão, tonto e com pouquíssimas forças no corpo, afinal, tinha passado os últimos meses de sua vida em algum recôndito mental lúgubre criado por uma criatura desconhecida que de alguma forma havia sido atraída para ele.
Os outros dois casais fizeram o mesmo e se abraçaram quando perceberam que a aparição que tinham visto na sala havia desaparecido.
O que se seguiu foi uma enxurrada de perguntas:
_O que era aquela coisa?_ disse Heloi._ Aonde ela foi?_ ele olhava em volta assustado procurando pela visão assombrosa que todos ali tinham presenciado o princípio do fenômeno.
_O que aquilo fez conosco?_perguntou Diana referindo-se ao fato de que sua cabeça estava levemente atordoada.
Nenhum deles podia sequer imaginar, mas várias de suas memórias tinham se perdido para sempre dentro do turbilhão sombrio do fantasma, em sua maioria seriam apenas memórias antigas e já quase totalmente esquecidas, mas de uma forma ou de outra a violação a qual foram submetidos traria conseqüências mais acentuadas para todos eles no futuro. Naquele momento eles não tinham idéia de tal fato e nada importava mais do que estarem todos aparentemente bem.
Ângelo não revelou tudo o que tinha visto e certamente sabia que os outros não tinham presenciado as mesmas coisas que ele, porque se fosse esse o caso estariam todos extremamente fragilizados. Ele sabia que aquela coisa estranha formada por névoa escura queria alguma coisa que só Ângelo tinha para fornecer. Mas ele não sabia que todos ali tiveram suas mentes quase totalmente reviradas do avesso.
E tinha razão; a aparição não só buscava algo especial dentro de Ângelo, como já tinha encontrado, e enquanto vasculhava cada canto da mente do homem, manteve as demais pessoas da sala num estado semelhante a um transe, mas ao mesmo tempo se alimentava também de cada um deles.
Nenhum deles percebia que ainda não conseguiam ouvir o som da chuva que continuava caindo do lado de fora da casa, pois estavam tentando entender o que tinha se passado ali e muitos detalhes ainda estavam passando despercebidos. O feitiço ainda não tina se quebrado.
_Foi algum tipo de delírio em grupo?_ Perguntou Patrícia, tentando colocar firmeza nas palavras. Não estava conseguindo.
_Acho que não. _disse Diana. Ela estava tentando ser racional para tentar trazer um pouco de sanidade àquela sala, mas não seria assim tão fácil.
Antes que qualquer um pudesse comentar mais alguma coisa, Ricardo se apressou em afirmar:
_ Não foi delírio._afirmou_ Foi tudo real. O tom de voz de Ricardo era grave e firme, parecia ter certeza absoluta do que estava dizendo. E tinha.
_ Então o que era aquilo?_ Heloi finalmente conseguiu falar e também queria respostas. Mas sua voz soou quase como a de um garoto. Não estava recuperado da experiência fora do normal.
Ricardo suspirou e em seguida fez uma careta provocada pelas dores que sentia. Respondeu:
_ Não sei o que é aquilo, mas tenho certeza de que ele quer você._ Apontou para Ângelo. Todos olharam imediatamente para o namorado de Diana. Ricardo continuou_ Quer você muito mais do que já quis qualquer outro antes de nós.
Ângelo ficou em silencio por dois motivos; primeiro porque já sabia que a afirmação que acabara de ser feita era verdade, ele mesmo havia sentido toda a volúpia do fantasma enquanto este se ramificava dentro de seu corpo. E segundo, ele não sabia o motivo de tudo aquilo. Ficou calado.
Diana o abraçou com força tentando produzir algum conforto para o namorado, mas Ângelo estava praticamente impassível. Muita coisa estava faltando em sua cabeça e o pensamento não estava fluindo como deveria. A dor de cabeça estava muito mais violenta.
Ricardo não tinha lembrança alguma da prisão escura onde passara todo o tempo em que Fausto estava livre para caminhar sobre a terra, tampouco podia imaginar as atrocidades que sua outra face, motivada pelo fantasma obscuro, tinha praticado. Não se lembrava de ter feito a tatuagem, nem de ter matado a sangue frio o irmão de sua amada Mônica, mas ele sabia que muitas coisas ruins tinham sido praticadas e no momento certo o medo da revelação destes atos o atormentaria quase tanto quanto seus antigos delírios.
_ O que vamos fazer agora?_ Mônica perguntou.
As mulheres pareciam ter sido menos afetadas pela experiência surreal, mas na verdade elas eram muito mais fortes do que aparentavam. Estavam todas com muito medo, mas não podiam ficar ali sem saber o que fazer; eles tinham que decidir logo alguma coisa.
Ângelo olhava para os cantos inferiores das paredes procurando qualquer indício da presença estranha e sombria; procurava algo translúcido, algo se esgueirando, algo fora do normal; fumaça, sombra, qualquer coisa. Não havia nada.
Patrícia teve um estalo, correu para a porta que antes estava trancada e verificou que o que quer que estivesse mantendo a casa fechada não estava mais surtindo efeito. A porta se abriu facilmente e ela finalmente viu a chuva caindo do lado de fora. Somente naquele momento o som da chuva entrou novamente na casa e o mundo pareceu recuperar um pouco de sua vida; não estavam percebendo o quanto a atmosfera dentro da casa estava pesada até que aquela porta foi aberta. Foi como se a presença densa e sufocante que saturava o ambiente tivesse se esvaído pela porta e deixado o ar natural voltar para as dependências do domicílio. Foi exatamente isso o que aconteceu. O feitiço tinha finalmente se partido.
_Ele não está mais aqui._ disse Ricardo.
O alívio no ambiente foi tão perceptível que todos notaram a saída do mal.
_Meu Deus! O que foi que aconteceu conosco?_ Mônica ousou perguntar, mais para si mesma do que para qualquer outro.
Aquela era uma dúvida que todos ali queriam ver respondida, mas não seriam capazes. Porém havia algo muito mais perturbador que todos perceberiam horas depois. Eles saberiam quem era aquele fantasma, pois todo aquele contato havia deixado marcas profundas e indisfarçáveis; se qualquer um deles desejasse realmente saber quem os tinha violado, saberiam, mas logo que percebessem essa possibilidade, todos prefeririam não olhar para dentro de si e descobrir a verdade; alguns deles por medo e outros por pensar que o episódio já tinha acabado e que se tentasse fazer contato com qualquer resquício do monstro, isso poderia atraí-lo novamente para a vida deles. De certo modo estavam corretos.
_ Acho que não estamos em condições de tomar qualquer decisão_ Diana argumentou_ Não sabemos nada sobre o que nos aconteceu, é possível que nosso discernimento esteja de alguma forma, corrompido, se não pela experiência em si, mas pelas nossas próprias emoções. Qualquer julgamento agora pode ser precipitado. Precisamos de tempo para tentar entender o mínimo do que aconteceu.
Os outros concordaram sem falar. A sobriedade e a lucidez de Diana eram impressionantes.
Só a partir daquele momento eles conseguiram ter coragem para se sentar, tomaram assento no sofá, mas antes Ângelo e Heloi ajudaram Ricardo, que continuava tonto, a se sentar. E sentados permaneceram por mais quase uma hora sem falar absolutamente nada, cada qual remoendo os fatos à sua maneira.



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