Bateram na porta.
Ricardo estava sozinho em casa deitado
no sofá da sala, tinha passado os últimos dias completamente isolado e pouco
havia se envolvido na busca por Ângelo, sabia que ele estava sumido havia um
mês, mas ele, Ricardo, não tinha coragem de ficar frente a frente com as
pessoas as quais prejudicara tanto. Não conseguira explicar a Mônica o que
tinha acontecido com ele próprio, não conseguia nem explicar a si mesmo, e se
sentia terrivelmente culpado por ter sido o instrumento usado por aquela força
caótica para tirar a vida de Leonardo e sabe Deus de mais quem. Todos os dias
ele se perguntava o que mais teria feito, tinha medo até de pensar, mas de tudo
que possivelmente fizera quando esteve aprisionado pela criatura, uma única
coisa havia restado, uma marca física terrível; uma tatuagem com o nome
Tânatos, que parecia ter sido confeccionada com ferro e fogo e não com uma
agulha especial. A tatuagem tomava o braço direito desde o punho até o
cotovelo.
Ele não conseguia se perdoar mesmo
sabendo que no fundo teve pouca culpa dos prováveis atos insanos que cometeu,
jamais foi sua vontade fazer tanto mal principalmente à mulher que sempre amou.
Porém sabia que seria muito difícil para todos aceitarem e acreditarem nisso.
Portanto teria de carregar esse peso para o resto da vida.
Teve pouco tempo durante este último
mês para conversar com Mônica, queria tentar esclarecer algumas coisas, mesmo
sem saber o que ia dizer, tinha a esperança de que ela percebesse a verdade em
seus olhos e a sinceridade em suas palavras, mas Mônica, assim como todos os
outros, tinham sofrido demais e agora estavam muito ocupados fazendo todo o
possível para tentar encontrar o rapaz desaparecido. Além disso, as feridas
emocionais entre eles ainda permaneciam abertas e qualquer toque poderia ser
extremamente doloroso.
Ricardo queria ajudar de alguma forma,
mas tinha medo de que se tentasse se envolver acabasse despertando a sombra
dentro dele e por isso achou mais prudente permanecer afastado, porque, assim
como os demais, ele sabia que aquele desaparecimento era obra da mesma criatura
que o tinha usado e se infiltrado em seu corpo em algum momento de sua vida;
aquela coisa que o aprisionara dentro de si mesmo e que passou anos
assediando-o e se alimentando das emoções negativas que todo ser humano
desenvolve durante a vida, e por algum motivo escuso a criatura acabou por usar
exatamente isso para dominá-lo por completo. Um monstro que possivelmente
devorasse homens fazendo-os desaparecer completamente da face da terra como
fizera com Ângelo, ao menos era isso que Ricardo achava. Havia passado tempo
demais sob o domínio da criatura e sentia como se parte dela ainda estivesse
dentro dele, observando por trás de seus próprios olhos e esperando o momento
de fazer o mesmo a ele. Era apenas uma sensação, mas podia ser causada pelo
medo.
Ao contrário de Ricardo, nenhum dos
outros queria se entregar a essa realidade porque se aceitassem o fato de que
uma criatura tão hedionda existisse e fosse capaz de tragar seres humanos a
esmo então tudo o mais em que acreditavam desde sempre perderia o sentido.
Admitir a existência da criatura era o mesmo que admitir que a humanidade nada
sabe sobre as forças que a rodeiam ou sobre os poderes que governam o universo,
era jogar na lata de lixo toda a base do pensamento que norteia a sociedade, o
pensamento que diz que tudo pode ser explicado, um pensamento tão reconfortante
quanto mentiroso, mas Ricardo não tinha dúvidas, nem poderia, agora ele sabia
que nem tudo pode ser explicado e que todas as pessoas vivem na verdade bem no
meio de coisas tão grandiosas e incompreensíveis que é melhor ignorá-las e
torcer para que elas jamais fiquem frente a frente conosco. Infelizmente já era
tarde demais para ele.
Queria que aquela coisa nunca tivesse
cruzado o seu caminho ou ele tivesse cruzado o dela, como poderia saber quem
achou quem ou, quem atraiu quem? Perdera tudo o que mais amava, não tinha mais
emprego, perdera grande parte de suas memórias, perdera a mulher que amava,
amigos, suas referências e todas as suas convicções. Ricardo era apenas uma
sombra do homem que já foi um dia.Além disso, ele não estava conseguindo dormir
bem durante as noites, muito embora não tivesse nenhum pesadelo desde o
episódio na casa da prima de Mônica, de fato, Ricardo não ouviu mais vozes, não
teve mais nenhuma visão de insetos gigantes ou deformados e aquilo que parecia
ser uma loucura aguda desaparecera completamente desde aquele dia. Nunca teve
semanas tão tranquilas.
Bateram novamente na porta.
Ricardo permanecia tão absorto em seus
pensamentos que nem estava ouvindo. Tudo o que ele tinha era o momento
presente, porque o passado distante desapareceu de sua mente deixando apenas
poucos vestígios e o recente estava irremediavelmente manchado com a marca
obscura do caos. Por isso passava os dias mergulhado em pensamentos; embrenhado
tão profundamente que por vezes era difícil até mesmo retornar.
Se pudesse falar com alguém a respeito
do que ele achava que tinha acontecido com sua vida nos últimos tempos, diria
que por algum motivo de força maior ou apenas por uma brincadeira maldosa,
algum anjo expulso do céu teria estendido suas asas negras como a noite sobre
ele. Talvez fosse isso o que os anjos decaídos e lançados para fora dos muros
da cidade celestial faziam com as pessoas, por puro ódio, maldade e vingança,
acabavam com a vida dos seres humanos através das eras, roubando, destruindo e
por fim matando tudo em seu caminho. Ricardo passou todo o mês pensando
naquilo, mas quem sabe se era verdade ou não.
Ouviu a voz de Mônica chamando à porta
e foi aquilo o que conseguiu arrastá-lo de volta do vendaval de pensamentos e
elucubrações para a dureza da realidade.
_Mônica?! _ disse para si mesmo, mas
num tom tão alto que qualquer pessoa que estivesse presente na casa poderia
escutar.
Um filete de alegria e até de esperança
apareceu dentro dele, poderia finalmente conversar com ela e colocar pra fora
tudo o que estava fustigando seu coração, quem sabe ela até o perdoasse por
todas as maldades.
_Um momento. Já estou indo._ gritou
enquanto se levantava do sofá da sala.
Ele tinha conseguido arrumar a casa de
forma que ela voltasse a ter a aparência de um lar, teve muito tempo livre para
isso, não foi capaz de comprar novamente os móveis e utensílios que quebrou
durante toda aquela crise, mas sua arrumação foi o suficiente para tornar a
casa habitável novamente, mesmo que fosse habitada apenas por ele. Mônica
poderia até se orgulhar de ver o que tinha conseguido fazer.
Ricardo olhou ao redor para ver se tudo
estava de acordo, sabia que estava; havia pouca coisa para arrumar e o lugar se
parecia com a casa de um homem sem emprego cujos móveis ele não possuía mais.
Correu para a porta.
_ Um minuto Mônica, já vou abrir.
No sofá; Ricardo havia se levantado e
não percebeu a presença de uma pena negra sobre a qual ele próprio estava
deitado, ela certamente não estava lá quando ele se deitou para descansar.
Ricardo girou a chave no contato da
fechadura e pressionou a maçaneta para baixo liberando a porta para abrir.
Se ele tivesse prestado bastante
atenção nos sinais, teria percebido que a criatura estava na sala,
observando-o, mas queria falar com Mônica, só isso importava, sua alma
precisava pelo menos tentar colocar um pouco de sentido em toda aquela desordem
emocional; tinha certeza de que suas chances com ela não existiam mais, mas não
queria que ela passasse o restante da vida achando que ele deliberadamente
promovera todo aquele mal por vontade própria. Era apenas uma questão de
conseguir um pouco de paz interior para, a partir de então, recolher os cacos e
continuar com o que restou de sua vida da melhor maneira possível. Como se um
homem que olhou dentro dos olhos do abismo pudesse fazer isso.
Ricardo se lembrou de uma frase que
ouvira muito tempo atrás, não sabia onde nem sabia quem tinha dito, mas
dizia-se que, quando se olha para o abismo por muito tempo o abismo olha de
volta para você. Ricardo tinha olhado e tudo o que ele vira foi a escuridão,
sua própria escuridão e uma outra pior, viva por si mesma e que muito
provavelmente iria voltar para buscá-lo algum dia.
O encontro foi cedo demais.
A porta se abriu e o susto foi tão
grande que ele não teve tempo de se sobressaltar. Não era Mônica.
_ Você. _Disse o dono da casa. _ Todos
estão lhe procurando já faz um mês, sua família, seus amigos e a polícia. Por
onde você andou?
_Não queira saber._ A voz era
diferente.
Ricardo olhou de um lado para o outro
tinha certeza de que ouvira a voz de Mônica, mas ela não estava lá.
_ Não foi Mônica quem chamou por você,
fui eu._ o outro respondeu sem que Ricardo fizesse o comentário.
Algo estava errado.
_ O que você quer? Como chegou aqui se
não sabia onde eu morava?
Ângelo entrou na casa olhando fixamente
para o outro e disse:
_ Ainda não acabamos com você._ logo
que terminou de dizer aquilo todo o som do ambiente desapareceu.
Ricardo tentou correr, mas as sombras
surgiram por toda parte, vindas das profundezas, e o dominaram como uma
serpente que quebra os ossos de sua presa antes de devorá-la.
A criatura e Ângelo agora eram um só.
-- Fim --
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