O enorme caixote media pouco mais de dois metros de altura por quase quatro de largura; era reforçado nos cantos com proteções de metal que o defendiam de prováveis quedas, pancadas ou coisas afins; embora todo confeccionado com uma madeira escura e pesada. Possuía carimbos alfandegários e alguns papéis colados com fita adesiva por toda a parte frontal do caixote.
Laura e Ricardo Versailes eram os curadores de uma exposição única que seria realizada no Rio de Janeiro e duraria apenas uma semana; as peças, todas, pertenciam a um colecionador particular que conheceu o casal em uma viagem que estes fizeram à Paris e ficaram intimamente ligados por um laço de amizade entre as famílias.
Os dois, ao serem convidados por tal colecionador e após verem que o homem tinha uma vasta coleção de peças impares de vários períodos da história da humanidade; desde rústicas ferramentas de madeira petrificada e lascas de rocha retiradas de escavações paleontológicas datadas do período paleolítico, cerca de dois milhões de anos atrás e algumas até datadas do período neolítico, entre oito e dez mil anos antes de Cristo. Laura e Ricardo ficaram apaixonados pelo conjunto das obras que possuía também cerâmica babilônica, armamentos medievais, algumas joias de valor inestimável que pertenceram, segundo o dono, ao lendário Califado Abássida.
Porém, o que mais chamou a atenção dos Versailes foi a magnífica coleção de estátuas, belíssimas esculturas de épocas diferentes e com uma beleza tão vívida que pareciam ter sido feitas por mãos divinas. Havia Anjos e arcanjos com seus pares de asas grandes, vistosas e em todas as posições clássicas, empunhando espadas, escudos e até lanças; tinha também alguns santos diversos em uma perfeição assombrosa e os padroeiros da França e de Paris, Joana D’Arc e Santa Genoveva confeccionados com uma riqueza de detalhes tão grande que pareciam ter sido esculpidas por Michelangelo. Também estavam lá algumas estátuas que lembravam a obra de William Blake, dragões, demônios e gárgulas em todos os tamanhos. Aliás, havia uma Gárgula tão bem esculpida que imediatamente, Ricardo, ao vê-la, disse ao dono que queria trazê-la para o Brasil e montar uma exposição com todas as estátuas; a esposa endossou a ideia e o colecionador concordou de pronto fazendo apenas uma única objeção. Não permitiria que duas de suas estátuas viajassem para o Rio, uma era a própria gárgula de mármore cinza e a outra era uma estátua de um minotauro que, segundo ele, estava sendo restaurada e, portanto, não estava ali no seu galpão naquele momento.
Tanto Vânia quanto Ricardo não se contentaram com aquela negativa e passaram dias insistindo para que toda a coleção viesse para o Brasil. Depois de meses de negociações e muita persistência eles conseguiram um acordo; o dono liberava a coleção juntamente com a gárgula, mas o minotauro que permanecia em restauração ficaria em Paris, e assim foi feito, mas não sem mais algumas condições especiais.
O colecionador passou por escrito algumas recomendações com relações a cada uma das peças, mas tratava-se de praxe, ou seja, como as peças deveriam ser transportadas, acomodadas, instruções com relação à distância do público para não serem danificadas. Coisas do gênero, que o casal Versailes já conhecia muito bem pelo fato de trabalhar no ramo de antiguidades e exposições de tais objetos há alguma tempo.
Mas quanto à gárgula ele passou instruções muito rígidas, específicas, e em muito maior número, não eram simples regras de transporte ou conservação, mas sim uma espécie de lista meio descabida ou no mínimo excêntrica de como a estátua devia ser manuseada. Aliás, o próprio dono da estátua fretaria um avião que traria a peça para a exposição um dia antes do início da mesma e no dia seguinte ao término o avião particular a levaria novamente para Paris, ela não ficaria esperando o transporte junto com as demais.
Laura retirou os papéis colados por fita adesiva na parte frontal do grande caixote; a exposição começaria no dia seguinte e eles tinham pouco tempo para colocar a magnífica gárgula em seu lugar previamente estabelecido. O caixote foi trazido do aeroporto para o local do evento por uma firma contratada e esta mesma firma colocou-o no galpão atrás do centro de convenções escolhido para sediar o evento, voltariam na manhã seguinte para acertar os últimos detalhes e deixariam tudo arrumado para o início da exposição que se daria às treze horas. Porém os organizadores foram verificar se tudo estava OK, e aproveitaram para repassar parte do que deviam fazer, uma noite antes. E lá estavam eles.
Munido de um pé de cabra, Ricardo abriu o grande caixote que facilmente se soltou após ele ter retirado as proteções metálicas dos cantos e bordas, em seguida os quatro tampos de madeira sólida e escura caíram abrindo-se cada qual para seu lado e instantaneamente muitas bolas de borracha da circunferência de bolas de tênis se espalharam por toda a sala; uma quantidade absurda, mas eles sabiam que todas elas foram colocadas ali para que a estátua não se chocasse contra o interior do enorme caixote e assim preservasse a integridade do objeto.
Laura observava uma das folhas de papel com as instruções que seriam passadas na manhã seguinte aos funcionários que levariam o objeto para o salão de entrada da exposição.
Na primeira linha do documento estava escrito:
_ Mantenha a caixa fechada até o raiar do dia_ ela leu em voz alta.
_ Agora já é um pouco tarde_ disse o marido sorrindo e olhando encantado para aquele gigante alado e grotesco.
A estátua era imponente, possuía o garbo de um general alado e mantinha um ar altivo de um titã da noite, Ricardo podia entender como aquele objeto tinha sido usado na idade média para incutir medo em exércitos que possivelmente o via sobre a amurada de algum castelo na Europa; era como olhar para uma criatura oriunda dos mais medonhos e recônditos lugares da terra. E era justamente esse ar diferenciado, gótico, profano e nefasto que transferia à peça uma beleza única.
A riqueza de detalhes era outro atrativo, tudo foi minuciosamente reproduzido, as escamas na pele grossa da criatura, a calda longa em forma de serra terminando numa ponta em seta lembrando a calda dos dragões medievais, as garras tão perfeitas que pareciam retiradas de alguma fera extinta; as feições grotescas congeladas como que no meio de um rugido tenebroso, com muitos dentes à mostra, a língua precisamente colocada para fora da boca enorme, os chifres grandes e pontiagudos se lançando para frente e as magníficas asas de morcego gigante recolhidas sobre os ombros do animal como uma enorme capa.
Os músculos do tórax eram visíveis e perfeitos como os de um halterofilista, tal como os braços e pernas meio humanos meio animais, as veias saltando do pescoço e na testa bestial. A estátua era perfeita.
_ Cuide para que a estátua seja recolocada dentro da sua caixa a cada final de dia e mantenha a mesma fechada até a manhã seguinte_ Disse Laura lendo a segunda linha do documento.
Ricardo estava abobado com o objeto e disse meio sem prestar atenção:
_ Amanhã lemos isso com calma e passamos as instruções para os funcionários.
Laura dobrou os documentos, era uma lista longa, e colocou em uma pasta. Todas as demais peças já estavam prontas para serem visitadas pelos apreciadores de belas esculturas e arte em geral, e aquela era a única que faltava.
Por fim eles resolveram ir embora para retornar no outro dia pela manhã, mas foram surpreendidos pelo urro monstruoso que ecoou dentro do galpão.
Laura gritou.
Ricardo sobressaltou-se sem entender.
Voltando-se para o gigante alado eles constataram que, terrivelmente, a criatura já não estava mais ereta e sim curvada como se houvesse uma corcunda em suas costas.
Um outro rugido mortal e o monstro se colocou novamente ereto, suas asas se abriram e a envergadura alcançou quase cinco metros de uma ponta a outra, ambas as asas terminavam em garras pontiagudas. A calda do animal se balançou sinuosamente como uma serpente e em seguida chicoteou o chão.
A criatura bufou. Estava viva.
Ricardo segurou a esposa pelo braço intentando correr, não havia outra coisa a fazer; não havia o que pensar e nem tempo para elucubrações.
A gárgula finalmente deu um passo à frente, moveu a cabeça de um lado para outro como que procurando algo; bufou mais uma vez. Experimentou as asas rochosas e saiu caminhando na direção dos dois quando Laura gritou mais uma vez, sem querer, chamando a atenção do monstro.
Cada passo era bruto e seguido de um estrondo causado pelo impacto do peso da estátua viva contra o solo, ela devia pesar uma tonelada ou mais, ao menos era isso que aparentava. De repente aquele terrível pesadelo ambulante correu em direção a eles como se estivesse faminto; o casal correu aos gritos em direção a porta, Ricardo foi mais rápido do que a esposa.
O monstro abriu as enormes asas e saltou; aparentemente não conseguia voar, mas o ataque foi tão bem sucedido que o gigante caiu bem sobre Laura; Ricardo se voltou para ver o que tinha acontecido e ao ver a esposa sob o peso brutal da estátua gritou também, mas já era tarde. O monstro levantou a cabeça na direção do homem, Ricardo percebeu que suas chances ali eram mínimas.
O monstro saltou sobre ele cobrindo uma distância considerável e com uma precisão assombrosa.
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