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Sombras no sofá da sala -- Conto -- Conto de Érebus.



Judite estava implorando para o pai não se sentar no sofá; aquela criatura estava ali esperando ele e não era uma coisa boa.
_ Não pai!_ ela disse_ você não está vendo? Tem um negócio sentado ali no sofá.
A menina de dez anos era a única que parecia ver a criatura sentada no sofá de sua sala; um ser sem forma, feito completamente de sombras.
_ Do que é que você está falando filha?_ disse o pai da menina.
Ele acabara de chegar da rua, tinha ido comprar seu maço diário de cigarros e estava ansioso por se sentar, fumar e ver um pouco de televisão.
A menina puxou o pai pela mão até o limiar da sala que fazia divisa com a cozinha e procurou pela mãe, mas a mãe acabara de sair, devia ter ido até a padaria ou ao mercadinho da esquina.
Judite olhou para o sofá e ficou abismada com o fato de que as sombras permaneciam lá, como se de repente uma grande nuvem negra de pequenos insetos houvesse pousado sobre aquele móvel.
_ Pai!_ Ela disse novamente_ você não está vendo?
_ Vendo o quê?
_ Aquilo pai! Aquelas sombras no sofá.
O pai de Judite se desvencilhou das mãozinhas trêmulas da menina; havia tido um dia duro no trabalho, talvez o mais duro desde que se tornou fiscal municipal. Uma mulher o tinha agredido porque ele havia tomado toda a mercadoria ilegal que ela comercializava nas ruas de forma irregular; não gostava de fazer isso com as pessoas, mas era seu trabalho e cumpria ordens.
A mulher vendia remédios confeccionados com ervas, medalhas e medalhões que segundo ela serviam para proteger contra os maus espíritos e as forças do caos; alguns incensos, objetos como punhais que ela jurou serem decorativos e outras tralhas como pedras coloridas que ela dizia serem mágicas e todo tipo de apetrechos esotéricos.
Essa mesma mulher ficou indignada quando tudo o que ela tinha foi recolhido e levado ao carro da fiscalização, ela estava parada em um local onde não poderia ficar e abordava os transeuntes de modo alucinado falando sobre seus futuros geralmente obscuros e cobrando uma quantia de poucos reais para que pudesse presenteá-los com uma proteção que afastasse o mal.
Segundo os relatos de pessoas que a denunciaram, ela estava ali fazia dias, às vezes gritando sandices em plena rua e aquilo já estava amedrontando e incomodando os moradores e comerciantes locais.
O pai de Judite ficou incumbido de recolher todo aquele material e levar para o deposito, geralmente quando se trata de uma única pessoa não há tanta resistência, ou por vezes, se faz pouca resistência, algumas ameaças, mas é só isso. Porém, aquela mulher fez um verdadeiro escândalo, gritou, despejou uma tonelada de palavrões sobre ele e recitou versos em um idioma que ele não conhecia, provavelmente o estivesse xingando em várias línguas.
_ Você me paga! _ Gritava ela com uma voz esganiçada, e também. _ ainda hoje você vai pagar caro!
A mulher estava completamente fora de si e continuou despejando afrontas enquanto o fiscal recolhia as coisas dela e colocava numa sacola. Ele, na verdade, não queria que ocorresse daquela forma, sabia que todas as pessoas precisam trabalhar para se sustentar, ele era pai de família e conhecia o peso das responsabilidades, provavelmente aquela mulher necessitasse bastante da renda conseguida com suas bugigangas. Se dependesse dele aquela mulher permaneceria trabalhando, receberia apenas uma repreensão para não assustar mais as pessoas, mas continuaria trabalhando.
Como se não bastasse ela o feriu com algum objeto que ele não pode ver, estava de costas levando a sacola para o carro quando ela se jogou como uma louca sobre ele derrubando-o e ferindo-lhe as costas; em seguida correu desesperadamente para não acabar sendo detida pelas autoridades policiais que chegaram. Aquela apreensão tinha sido muito conturbada e era apenas o início do dia.
A mulher gritava para o vento no meio de sua fuga enlouquecida:
_ Ainda hoje! Ainda hoje!_ E gargalhava loucamente.
Todo o restante do dia foi um verdadeiro caos, tudo o que podia dar errado tinha dado errado, ele quase começou a crer que a mulher tinha lançado alguma maldição sobre ele, mas não acreditava nessas coisas; forçou-se a aceitar que era apenas um dia ruim.

Judite correu e ficou na frente dele, não queria deixá-lo sentar para usufruir um pouco de tranquilidade naquela noite; ele tentava se desvencilhar da menina com o máximo paciência que um pai pode ter quando a brincadeira da filha extrapola os limites.
_ Filha_ disse ele_ papai quer descansar, vou me sentar no sofá, fumar meu cigarro e ver um pouco de televisão até sua mãe voltar; por favor, vai brincar no seu quarto.
Mas Judite estava irredutível, ela se agarrou à barra da camisa do pai e fazia força para não deixá-lo andar, mas obviamente era inútil.
_Olha lá pai, olha lá! Não senta!
Ele parou e olhou para o sofá, não havia absolutamente nada, aliás, por causa do cansaço que sentia e a dor do pequeno ferimento nas costas, aquela poltrona o convidava muito mais para um bom momento de descanso.
Mas as sombras permaneciam lá; Judite as estava vendo nitidamente; ora, por que o pai dela não via aquilo? Por que não acreditava nela?
_ Judite vá brincar no seu quarto, já disse. _ ele falou em uma bronca parcial.
Com a mão ele soltou a barra de sua camisa dos ávidos dedinhos da menina e a virou para o lado da porta.
_ Vai lá pra dentro.
Judite tentou correr para chamar a mãe, mas parou no meio do movimento quando viu o pai finalmente sentar no sofá; as sombras praticamente se abriram para recebê-lo e em seguida se tornaram algo uniforme, como uma grande massa obscura que se fechou sobre ele com um forte abraço de serpente.
A menina gritou e levou as mãos até a boca; olhou para um lado e para o outro, mas sua mãe não estava lá, não havia mais ninguém em casa; só ela. O pai soltou um meio grito quando sentiu a pressão em seu peito e costas, uma pressão terrivelmente violenta; ele escutou o estalar das costelas imediatamente, seus braços ficaram imóveis como que presos por alguma coisa que os circundava, mas ele não via nada.
Judite gritou mais alto, um grito estridente que só mesmo uma menina aterrorizada podia produzir.
_ Pai! _chamava.
Os ossos dos braços também estalaram, certamente haviam partido, mas o homem não tinha ar nos pulmões para externar o grito apavorante que estava preso na garganta; todo o ar foi roubado no momento em que sentou no sofá.
As lágrimas dele começaram a sair, não porque estivesse chorando, mas sim porque estava sendo tão brutalmente espremido que elas simplesmente brotavam de seu corpo; a agonia era insuportável. A língua deixou a boca e pendeu para fora; Judite não sabia o que fazer, ela chorava violentamente e gritava tentando fazer com que o pai se levantasse, mas ele parecia não ouvi-la mais, não conseguia mais respirar e a consciência dele já o estava abandonando.
A menina correu chorando e saltou sobre o pai, estava com muito medo, mas não podia fazer outra coisa. Ela agarrou o pai pelos braços e fez o máximo de força que conseguiu para tentar puxá-lo para longe do sofá.
“Onde estaria a sua mãe?”_ pensou.
A força dos pequenos braços finos dela não eram suficientes para libertar o pai do abraço das sombras, mas a menina não desistiu; gritando histericamente e aos prantos ela continuou puxando, puxando e puxando até que de repente o corpo do pai saiu do sofá e caiu no chão  com a força do último puxão que Judite dera, ou talvez porque as sombras já o tivessem consumido.
Não havia mais sombras lá, desapareceram como num passe de mágica, ou, haviam se escondido. O pai, caído, não esboçava reação alguma, mas respirava de maneira muito fraca e entrecortada; estava vivo. Mas permaneceria assim?

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